Professor de história fica três meses preso em São Paulo por desacato após discutir com PMs

Brasil de Fato (BdF) – Depois de passar quase três meses preso por desacato no Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de Franco da Rocha (SP), o professor de história Adriano Gomes da Silva e seu advogado correm contra o tempo para convencer o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a anular sua sentença, antes do recesso de fim de ano.  

Na última quarta-feira (11), a defesa de Adriano conseguiu que ele progredisse para uma pena em regime aberto e, depois de 86 dias encarcerado, o ativista e professor da rede pública reencontrou a companheira e os dois filhos em casa. O professor está cumprindo medidas restritivas, tais como recolhimento noturno, proibição de sair da cidade e comparecimento mensal ao fórum.   

Sua sentença foi feita unicamente com base nos depoimentos dos policiais militares (PMs) que se sentiram ofendidos verbalmente por Adriano em um episódio ocorrido em 2018. Acusado de ter xingado os agentes de “capitães do mato” e “fascistas” após o despejo da ocupação onde vivia, o professor foi condenado a 10 meses e 26 dias de prisão em regime semi-aberto.  

Até progredir para regime aberto, no entanto, cumpriu a pena integralmente dentro da cadeia. Seu advogado, Igor Silva, afirma nunca ter se deparado com uma condenação por desacato com a privação de liberdade como pena. 

Nesta terça-feira (17), Silva fez uma sustentação oral no STJ pedindo o habeas corpus de seu cliente, argumentando pela ilegalidade e desproporcionalidade da pena. Nos próximos dias, a Corte deve tomar uma decisão sobre a anulação, readequação ou manutenção da sentença contra o professor de 45 anos.  

“A gente entende que essa sentença é desproporcional. Primeiro, ao se levar em consideração o tipo de delito que ele é acusado. Não envolve violência e grave ameaça. Segundo, se utilizaram apenas das palavras dos policiais. E o regime que impuseram a ele é muito desnecessário”, pontua o advogado Igor Silva.  

“Uma das ilegalidades do processo é que está sendo aplicada uma dupla pena. Ele está respondendo por desacatar dois policiais quando, em verdade, a lei determina que a vítima é só uma: o Estado e não o policial”, argumenta Silva. 

O desacato 

O episódio aconteceu em 2018, durante o despejo de um imóvel ocupado na rua Afonso Vaz, no Butantã. “Adriano é um militante de causas de luta pela moradia, pela educação”, introduz o advogado. “Ele foi desalojado do imóvel e nesta reintegração houve conflito entre a polícia e os ocupantes”, conta Igor Silva.  

Horas depois, no mesmo dia, Adriano Gomes se deparou com uma mulher que tinha sido vítima de violência doméstica. “Ele foi auxiliá-la, estava na rua chorando e tinham acionado a polícia”, narra Silva. Quando chegaram, os policiais eram os mesmos do despejo. Todos se reconheceram, houve um bate-boca e Adriano foi detido.  

Faltava pouco para a eleição que alçaria Jair Bolsonaro à presidência. “Chegando na delegacia, segundo o depoimento de Adriano, os policiais fizeram uma saudação nazista para ele, repetiram que Bolsonaro ia ganhar a eleição, que ‘vocês estão fodidos’, o xingaram. Por sua vez, os policiais falaram que Adriano os xingou também”, relata o advogado. Ainda de acordo com depoimento de professor, ele foi agredido com tapas na cara. 

No processo a que o Brasil de Fato teve acesso, o PM Murilo César de Oliveira Santos afirma, em depoimento, que se sentiu ofendido pelo professor. “Me chamou de ‘capitão do mato’, de um monte de coisas assim. Falou que eu era pago pelos brancos para oprimir os negros, tudo isso aí, palavras de baixo calão”, depôs.  

Naquele dia, por se tratar de um delito de menor potencial ofensivo, Adriano foi liberado. E o processo seguiu. Um oficial de justiça tentou intimá-lo, mas alegou não o ter encontrado.  

“A própria Justiça não tinha a intenção de comunicá-lo devidamente”, opina John, professor de sociologia, amigo e companheiro de militância de Gomes, que preferiu não ter o sobrenome identificado. “Porque Adriano trabalhava na rede estadual e depois passou a trabalhar na rede municipal de ensino, ou seja, tem endereços fixos de local de trabalho”, aponta.   

Os anos se passaram, o professor não participou das audiências, não conseguiu se defender e foi sentenciado sem nem saber. Já sem ter direito a recurso, teve o mandado de prisão expedido em 2022. Foi no último 16 de setembro deste ano de 2024, no entanto, que soube.  

Naquela segunda-feira, Adriano dirigia com a família em São Paulo quando passou por uma blitz rotineira. Entregou seus documentos e foi, então, surpreendido pela notícia de que tinha sido condenado à prisão por desacato. Foi levado no ato.  


Adriano Gomes, professor de história da rede pública municipal, não sabia de sua condenação quando foi detido, seis anos após o episódio / Arquivo Pessoal

Risco de demissão 

Enquanto estava no presídio de Franco da Rocha, foi informado de que teria uma tele-audiência. Imaginou que seria com seu advogado. Se enganou: eram representantes da prefeitura de São Paulo informando sobre a abertura de um processo administrativo que poderá resultar na demissão de seu cargo como professor da rede pública, de onde vem o salário do qual sua família depende. 

O caso está sendo acompanhado pelo Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias no município de São Paulo (Sindsep).  

“Fiquei muito triste porque é desumano. Você estar numa situação de cárcere, sem respeito à dignidade humana, e aí vêm procuradores do município para apurar meu possível crime de lutar por moradia, de resistir contra um ataque policial. Como assim? O que está certo está errado, o que está errado está certo. Então é uma coisa muito difícil”, relata Adriano.  

“Fiquei abismado. Inclusive com a rapidez. Ainda mais trancado lá. Agora eu consigo enxergar melhor”, disse ao Brasil de Fato de sua casa, ao lado dos filhos.  

“E tanta coisa errada na cidade para resolver, não vejo nada dessa eficiência. Um prefeito denunciado pela ‘máfia da creche’”, ilustra. Gomes se refere ao inquérito da Polícia Federal que investiga o possível envolvimento do prefeito de São Paulo Ricardo Nunes (MDB) e de duas empresas, uma no nome de sua família, no desvio de verbas públicas de creches conveniadas ao município. “Não tem essa agilidade toda para resolver isso. E comigo isso?”, questiona. 

Criminalização  

Adriano Gomes foi um dos criadores, junto com John, do Movimento Autônomo pela Educação (MAE). “Fundado no calor dos acontecimentos de junho de 2013, o coletivo se posicionava contra as políticas neoliberais propostas pelo governo Alckmin [na época do PSDB] e contra a burocracia sindical”, conta John. 

No Dia dos Professores, em 15 de outubro, Adriano completou um mês preso. Escreveu uma carta a companheira, seu advogado e “todes que lutam por um mundo justo e solidário”.  

Nela, descreve ter sido “preso por desacato (pasmem), por ter participado de um processo de resistência a uma reintegração de posse onde famílias sem-teto lutavam pelo direito sagrado à moradia”: “Não matei, nem roubei, tampouco roubei dinheiro público, não cometi genocídio, não trafiquei e não participei de nenhuma tentativa de golpe de Estado”. 

“Aqui no cárcere, camaradas, a situação é terrível”, caracteriza Gomes. “Falta água diariamente, alimentação ruim e azeda, celas superlotadas, funcionários despreparados nos oprimem a todo momento com xingamentos, ameaças de agressões físicas, qualquer coisa coloca o reeducando no castigo, que está sempre cheio”, elenca. 

“A população carcerária está adoecida e não temos atendimento médico com dignidade, na maioria dos dias não há médico…”, narra. “Graças à solidariedade entre os presos, com muita dificuldade nos mantemos”, escreve.  

Perguntado sobre a expectativa para o próximo período, Adriano cita as últimas eleições municipais ao dizer que “não espera coisas boas”. “Dores e perseguição, coisas que estão acontecendo e que nunca pararam de acontecer. Mas seguimos lutando para que o planeta seja a casa de todo mundo e não de uma meia dúzia endinheirada”, afirma, ao resumir: “Só queremos respeito”.

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