O ciclone extratropical, que atingiu o Rio Grande do Sul no último dia 16 e deixou um saldo de 16 mortes, milhares de famílias desabrigadas e destruição de inúmeras casas e outros estragos, expôs mais uma vez os graves problemas de falta de energia elétrica após os temporais.
O serviço hoje é totalmente privado no estado, após a privatização da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), vendida em leilão promovido pelo governo Eduardo Leite (PSDB), em 31 de março de 2021, com lance único de R$ 100 mil, o preço de um automóvel novo, para o Grupo Equatorial.
A empresa atende 72 municípios da região metropolitana de Porto Alegre, Sul, Centro-Sul e Norte do RS. O restante das cidades gaúchas é atendido pela RGE Energia, que adquiriu a outra parte da CEEE após fatiamento e privatização no governo Antonio Britto (PMDB).
Novamente houve uma enxurrada de reclamações de consumidores indignados com a falta de luz. No dia 19, por exemplo, cinco dias depois do ciclone, cerca de 3,8 mil unidades seguiam sem energia elétrica na área de abrangência da Equatorial.
Morador reclama da falta de luz e dos canais de atendimento
“Dia após dia eles me mandam esperar, sem perspectiva de retorno da energia. Diversos alimentos estragaram na geladeira e amanhã completo uma semana morando no escuro”, descreveu um morador de Porto Alegre no site Reclame Aqui.
“Até este momento de meu relato, exatamente às 21h18 deste dia 20 de junho, ainda estou sem luz”, publicou outro morador da capital gaúcha.
O professor Jéferson Righetto, morador do bairro Partenon, em Porto Alegre, contaou que vem enfrentando problemas de falta de energia elétrica desde a passagem do ciclone. Ele disse que, embora a luz tenha sido religada para quase toda a região em que mora, viveu um “calvário” entre os canais de atendimento da empresa.
“Primeiro para conseguir a chamada telefônica. Após conseguir o registro, eles cancelaram, alegando que já teria sido atendido, que a luz estaria restabelecida. Já se vão cinco dias completos sem energia a pleno na residência. Eles não atendem e não conseguem dar previsão”, denunciou o professor em reportagem do Matinal.
Ele havia buscado contato por SMS, por WhatsApp e telefone. “Hoje, então, fui à loja física da Azenha. A dificuldade é muito grande. O atendimento é demorado e, quando se chega lá, dão a mesma explicação utilizada nos outros canais. A supervisora garantiu que viriam operadores nesta quarta-feira, o prazo expirou, e a companhia não se responsabiliza por nada”, protestou.
O ciclone foi um dos maiores desastres meteorológicos da história do Estado, que provocou enchentes, alagamentos, queda de barreiras e pontes nas estradas, atingindo cerca de dois milhões de pessoas.
A agilidade da Equatorial, neste contexto de mudanças climáticas e aquecimento global, que originam esses fenômenos com frequência e intensidade, é questionada não somente por moradores das áreas afetadas, mas também pelos eletricitários.
Quase mil funcionários da CEEE demitidos após privatização
Sete meses depois do processo de privatização, a Equatorial realizou, em outubro de 2021, um plano de desligamento voluntário (PDV) que culminou na saída de 998 trabalhadores.
Essa é uma das razões apontadas pelo presidente do Sindicato dos Eletricitários do Rio Grande do Sul (Senergisul), Antonio Silveira, para ter piorado o serviço de restabelecimento de energia elétrica após os temporais.
Segundo ele, as demissões impactaram “enormemente” os serviços prestados à população. “Muitos trabalhadores com experiência e qualificação aderiram [ao PDV]”, explica.
“As atividades estão sendo atendidas por empresas terceirizadas, das quais recebemos diariamente reclamações de trabalhadores, envolvendo precarização do trabalho, baixos salários, não pagamento de horas extras, com descontos indevidos e poucas horas de formação para trabalhar. Em uma atividade de alto risco, como são os serviços em energia elétrica, isso reflete diretamente nos trabalhos prestados pela concessionária”, disse o sindicalista.
A empresa, por outro lado, diz que há uma mescla do conhecimento de “funcionários da CEEE enquanto estatal com o know-how do Grupo Equatorial Energia”.
Até o fim do ano passado, de acordo com a concessionária, aproximadamente 1,6 mil funcionários, entre próprios e terceirizados, foram contratados para serviços de obras, serviços de campo, comerciais, fiscalizações e plantões de atendimento.
Inquérito aberto sobre atendimento e fornecimento
Em março de 2022, depois de uma tempestade que deixou 45 mil unidades sob concessão da Equatorial sem luz por três dias, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) abriu inquérito – ainda em andamento – para apurar as dificuldades na área abrangida pela empresa.
São três focos de atuação: “melhora nos canais de acesso para atendimento ao consumidor, tanto em agências digitais quanto físicas, falta e imprecisão de informação prestada ao usuário, e demora no restabelecimento de energia elétrica após interrupção”, conforme a promotora Ivana Kist Huppes Ferrazo.
Também a Defensoria Pública do Estado participou da audiência, no ano passado, e segue colhendo relatos a respeito das falhas no serviço. “Nos últimos dias, tivemos alguma demanda mais acentuada, especialmente comunicando a falta de energia elétrica em regiões mais afetadas e a eventual demora, em alguns pontos, no restabelecimento do serviço”, relatou o defensor Rafael Magagnin.
“As reclamações mais recentes dizem respeito à suspensão no fornecimento de energia elétrica, mas também estão ligadas a questões que envolvem a regularização do consumo, a cobrança retroativa e a algum desajuste no valor das faturas mensais de consumo”, disse.
Terceirização agravou dificuldades de atendimento
Reforçando os problemas enfrentados pelos consumidores, o Senergisul ressaltou que as dificuldades passam também pela terceirização das atividades de atendimento e da automatização de respostas em canais virtuais.
“Isso leva o consumidor a se deslocar a uma agência, enfrentar enormes filas para pedir uma segunda via da fatura ou mudança de titularidade, é o que podemos verificar na prática, basta ir na agência do bairro Azenha, em horário de pico”, afirmou o presidente do Sindicato.
Quem paga a conta é o consumidor
A Equatorial rebateu, em nota enviada ao Matinal, que “alguns desses canais, assim como aplicativos de transporte e outros serviços, fornecem estimativas de prazos de atendimento. Especificamente no caso do call center, ele é humanizado, com mais de 200 atendentes e transbordo com outros três call centers do Grupo Equatorial em outras regiões em situações de congestionamento”.
A empresa informou que normalizou, nos quatro dias depois do ciclone, o fornecimento de energia para 418 mil unidades consumidoras, o que representa 22% de toda a concessão da companhia.
Para o Senergisul, entretanto, trata-se de um problema cuja origem é a venda da CEEE pelo governador tucano, que agora tenta assinar o contrato de venda da Companhia Estadual de Saneamento (Corsan), cujo processo de privatização está repleto de irregularidades.
“O número de trabalhadores com experiência diminuiu muito após a privatização”, frisou Silveira. “As empresas têm a premissa de maximizar seus lucros e diminuir os custos, e essa conta quem paga é o consumidor”, enfatizou Silveira.
Fonte: CUT